Uma família sem
hierarquias

Na ordem normal da sociedade, para defender o estabelecido
(tradicionalistas, fariseus) ou para o derrubar pela força (revolucionários,
zelotas[1]) as crianças interessam
pouco ou são vistas como secundárias. Os que importam, os que valem, são os
grandes, os poderosos, os triunfadores (em função da tradição ou da revolução).
É, pois, contra isto, numa atitude verdadeiramente provocatória, que Jesus diz
e mostra que o mais importante são as crianças: precisamente aqueles que estão
nas mãos dos outros, que não têm força por si mesmos e se encontram à mercê dos
demais no seu caminho. É evidente que aqui não importa o sexo (meninos ou
meninas). Eles são importantes enquanto humanos e humanos com necessidades.
Assim deve ser interpretado Mc 9, 33-37 e 10,13-15 que explica
essa inversão central do evangelho [Chegaram a Cafarnaúm e, quando estavam em casa, Jesus perguntou: “Que
discutíeis pelo caminho?” Ficaram em silêncio porque,
no caminho, tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior.
Sentando-se, chamou os Doze e
disse-lhes: “Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o
servo de todos.” E, tomando um menino, colocou-o no meio deles,
abraçou-o e disse-lhes: “Quem receber um destes meninos em meu
nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que
me enviou.”] e [Apresentaram-lhe uns
pequeninos para que Ele os tocasse; mas os discípulos repreenderam os que os
haviam trazido. Vendo isto, Jesus indignou-se e disse-lhes: “Deixai
vir a mim os pequeninos e não os afasteis, porque o Reino de Deus pertence aos
que são como eles. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino
de Deus como um pequenino, não entrará nele.”]
Nesta perspectiva de inversão messiânica adquirem
importância especial junto das crianças, outro tipo de pessoas que estão
necessitadas. No meu ponto de vista, são estes os mais patentes: os pobres face
aos ricos, os doentes face aos saudáveis e os pecadores face aos justos. A
atitude de Jesus com cada um destes tipos de pessoas é distinta; a sua
criatividade e amor actua em cada caso de formas diferentes, Mas em todos se
descobre um mesmo tipo de inversão ou mudança escatológica[2] na linha de Lc 1,51-53
e 6, 20-21 [Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou
os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos
encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias] e [Erguendo os olhos para os discípulos, pôs-se a dizer: “Felizes vós, os
pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que
agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque
haveis de rir”].
Este tipo de análise simplista poderia levar-nos a dizer que
as mulheres aparecem ante Jesus na linha dos anteriores necessitados, formando,
deste modo, uma espécie de classe especial de oprimidos (conjuntamente com as
crianças, os pobres, os enfermos e os pecadores). Por isso haveria que amá-los
de forma peculiar, num gesto de protecção bondosa e, no fundo, escravizante:
deveríamos amar as mulheres de um modo condescendente como a seres humanos (o
que não acontecia nesse tempo). Pois bem, contra isso, Jesus ama-as (escuta-as,
acolhe-as e dialoga com elas) como com pessoas livres, capazes de entender e de
acolher todo o Evangelho de Deus, de igual forma que os homens. De certa forma
elas encontravam-se mais subordinadas do que os homens, e nos gestos e palavras
de Jesus pode encontrar-se um cuidado especial em valorizá-las.
Jesus não se ocupou das mulheres em especial.
Mas, em geral, devemos acrescentar que Jesus não se ocupou
delas somente com uma atitude de compaixão, como um superior se ocupa dos seus
inferiores. Jesus respeita-as e valoriza-as num plano de igualdade pessoal, como
o dos homens. Recordemos alguns textos e tradições:
– Jesus percorre os caminhos com homens e mulheres,
demarcando-se, assim, dos rabinos de Israel que somente acolhiam homens. No
entendimento dos rabinos as mulheres eram incapazes de entender a Lei e de explicá-la.
Este facto é perfeitamente compreensível numa sociedade patriarcal onde só os
homens se encontram socialmente “libertos” para o “lazer” da lei, para o estudo
das Santas Escrituras. Pois bem, Jesus não quis instaurar um movimento de
letrados, especialistas na ciência sagrada. Busca o mundo novo do “homem” (ser
humano) libertado para o reino. Para isso valem igualmente os homens ou as
mulheres. Ambos aparecem como iguais perante os dons de Deus e da Sua Graça.
Por isto mesmo as mulheres podem segui-lo – e seguem-no – como membros de pleno
direito dentro do seu grupo. Jesus não fundou uma escola de especialistas
homens que se isolam para o cultivo da lei; Ele ensinou numa espécie de
universidade aberta, na escola superior onde homens e mulheres, crianças e
maiores, podem escutá-Lo, entendê-Lo e segui-Lo.
– Naquela sociedade patriarcal (em sentido familiar, social
e religioso) Jesus condena principalmente o pecado próprio dos homens. À luz do
Evangelho é claro que são principalmente os homens com espírito patriarcal \quem
recusa mais a Deus, opondo-se ao “direito e graça” dos pobres. Neste sentido
mais profundo, podemos afirmar que Jesus veio para destruir as obras do homem
(não as da mulher, como foi entendido mais tarde numa interpretação gnóstica).
Praticamente são sempre as obras do homem patriarcal (orgulhoso, dominador) as
que impedem a chegada do reino. Mas, ao lado desses homens opressores há outros
que se encontram oprimidos; também a eles Jesus Cristo oferece o reino.
– Finalmente, Jesus parece haver situado num mesmo plano de
opressão e debilidade de homens e mulheres, ao vincular o seu gesto de perdão
tanto a cobradores de impostos como a prostitutas (Mt 21,31) [“Qual dos dois fez a vontade ao pai?”
Responderam eles: “O primeiro”. Jesus disse-lhes: “Em verdade vos digo: Os
cobradores de impostos e as meretrizes vão preceder-vos no Reino de Deus”]. Uns
e outros pareciam obrigados a vender o seu corpo (mulheres) ou a honestidade
económica (homens) ao serviço de uma sociedade machista que os oprime e utiliza
para, seguidamente, os desvalorizar. Os grupos que se encontram ligados a Jesus
por uma mesma situação de pecado social; os dois estão unidos a um mesmo
caminho de graça, aberto a Deus que os perdoa e os acolhe.
Nesta perspectiva descobrimos o que poderia chamar-se a
soberania do Evangelho. Certamente, Jesus não é um reformador social que aceita
em parte o que existe para mudá-lo depois ou melhorá-lo. Os reformadores
pactuam sempre porque querem partir de algo “bom” (forte) que já existe; desta
forma, acabam por ser revendedores, legalistas, distinguindo o que se deve
aceitar e o que se deve rejeitar. Jesus, pelo contrário, actua como profeta
escatológico: não se pôs a reformar o mundo para o melhorar; Não se ocupa a
mudar detalhes; anuncia algo mais profundo, mais definitivo, no fim do mundo
velho. Isto situa-nos no centro do Evangelho. Para dizer, na terminologia de Mc
2,18-22; Jesus não vem remendar com um pano novo o velho manto israelita; para
isso não lhe vale o odre velho da lei para pôr ali o seu vinho novo. Como
enviado escatológico de Deus, anuncia o fim do mundo velho, oferecendo já os
sinais e os princípios do seu reino, em atitude de nova criação (Mc 2,18-22) [Estando os discípulos de João e os
fariseus a jejuar, vieram dizer-lhe: “Porque é que os discípulos de João e os
dos fariseus guardam jejum, e os teus discípulos não jejuam?” Jesus
respondeu: “Poderão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com
eles? Enquanto têm consigo o esposo, não podem jejuar. Dias
virão em que o esposo lhes será tirado; e então, nesses dias, hão-de jejuar.”
“Ninguém
deita remendo de pano novo em roupa velha, pois o pano novo puxa o tecido velho
e o rasgão fica maior. E ninguém deita vinho novo em odres
velhos; se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho, tal como os
odres. Mas vinho novo, em odres novos”].
(Continua)
[1]
O termo zelota ou zelote significa
literalmente alguém que zela pelo nome de Deus. Apesar da palavra designar nos nossos dias alguém com
excesso de entusiasmo, a sua origem prende-se ao movimento político judaico do século I que procurava incitar o povo da Judeia a revoltar-se contra o Império
Romano e expulsar os romanos pela força das armas, que conduziu à primeira guerra judaico-romana (66-70).
[2]
Relativo à escatologia – Teoria acerca das coisas
que hão-de suceder depois do fim do mundo; teoria sobre o fim do mundo e da
humanidade.
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