Jean Mercier, um publicista francês, se deu conta da
gravidade das palavras do Papa Francisco dirigidas aos bispos, arcebispos e
cardeais reunidos no Rio por ocasião da Jornada Mundial da Juventude. Foram as
palavras mais duras que o Papa usou aqui. Infelizmente não foram comentadas
pela imprensa, certamente, porque julga se tratar de assuntos internos da
Igreja. De facto são, mas com repercussão enorme na vida pública, lá onde a
Igreja se faz presente. Sei de fonte fidedigna, pois a pessoa estava presente,
que um dos bispos conservadores com hábitos principescos, apenas comentou
irritado: “que discurso ridículo, esse do
Papa”. É bom relermos tal mensagem. Jean Mercier nos fez o favor de
dar-lhe relevância, coisa que fiz en passant
nos meus artigos. Publicou sua matéria la revista La Vie sob o título
A encíclica oculta de Francisco no Rio e traduzida para o português
pelo IHU de 9 de Agosto de 2013: Leonardo
Boff[1]
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Oficialmente, a primeira encíclica do Papa Francisco intitula-se
Lumen Fidei, e foi publicada no começo de Julho passado. Mas ela foi
escrita principalmente por Bento XVI; Francisco contentou-se em
lhe acrescentar uma espécie de posfácio. Na realidade, o papa trabalhava noutros
textos, aqueles que iria pronunciar na Jornada Mundial da Juventude (JMJ)
e, especialmente, em dois discursos fundamentais, endereçados aos bispos, que
ficaram um pouco perdidos no meio da massa de palavras endereçadas aos jovens
durante a JMJ…
No sábado, 27 de Julho, aos bispos brasileiros, o Papa
Francisco abordou questões difíceis e exigentes do domínio da pastoral, num
texto muito forte. Na manhã seguinte, ele ampliou o seu propósito através de
uma alocução aos bispos vindos de toda a América Latina. O conjunto desses dois
discursos constitui uma espécie de encíclica “oficiosa”, verdadeiro programa
para o pontificado, cujo fio condutor é uma autocrítica severa e o apelo à
conversão da instituição. O veredicto é claro, mesmo sob a forma de eufemismo:
“Estamos um pouco atrasados no que se refere à Conversão Pastoral”.
1. Quebrar o tabu em relação às mulheres e o cisma
silencioso dos decepcionados com a Igreja
Como nenhum Papa antes dele, Francisco se confronta
com a dolorosa questão dos católicos que abandonaram a Igreja, fenómeno
atestado na América Latina, mas que é conhecido de todos os países,
especialmente os europeus, nos últimos 50 anos. Ele evoca assim “o mistério
difícil das pessoas que abandonaram a Igreja” e se deixaram seduzir por outras
propostas.
Esta questão, considerada tabu durante muito tempo, é a
ocasião para uma severa autocrítica: “Talvez a Igreja lhes apareça demasiado
frágil, talvez demasiado longe das suas necessidades, talvez demasiado pobre
para dar resposta às suas inquietações, talvez demasiado fria para com elas,
talvez demasiado auto-referencial, talvez prisioneira da própria linguagem
rígida, talvez lhes pareça que o mundo fez da Igreja uma relíquia do passado,
insuficiente para as novas questões; talvez a Igreja tenha respostas para a
infância do homem, mas não para a sua idade adulta”.
O Papa acusa a Igreja de ser de tal maneira exigente em seus
“padrões” que desencoraja o conjunto das pessoas: “muitos buscaram atalhos,
porque se apresenta demasiado alta a ‘medida’ da Grande Igreja. Também existem
aqueles que reconhecem o ideal do homem e de vida proposto pela Igreja, mas não
têm a audácia de abraçá-lo. Pensam que este ideal seja grande demais para eles,
esteja fora das suas possibilidades; a meta a alcançar é inatingível”.
Uma Igreja chata, rígida, fria, centrada no seu umbigo!
Nunca Bento XVI e João Paulo II fizeram semelhante autocrítica. Bergoglio
não tem medo de dizer a verdade ao pensar em todos esses que se afastaram dela:
“Perante esta situação, o que fazer? Necessitamos de uma Igreja que não tenha
medo de entrar na noite deles. Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los
no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa.
Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que,
fugindo de Jerusalém, vagueiam sem meta, sozinhos, com o seu próprio
desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno
estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido. (…) Hoje, precisamos de uma
Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta”.
O Papa não hesita em tocar em outro assunto tabu na
instituição: o lugar das mulheres: “Não reduzamos o empenho das mulheres na
Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel activo na comunidade
eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela
corre o risco da esterilidade”. Embora a menção seja lapidar, é a primeira vez
que um Papa reconhece que a Igreja perdeu parte da sua credibilidade em relação
às mulheres.
A solução passa, segundo o Papa, pelo exercício da
maternidade da Igreja, isto é, pelo exercício da misericórdia. “Ela gera,
amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… Por isso, faz falta
uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a
misericórdia, temos hoje poucas possibilidades de nos inserir num mundo de
‘feridos’, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor”. Nesse
campo, há progressos a realizar: “Num hospital de campanha a emergência é curar
as feridas”.
A outra dimensão é a empatia afectiva e a proximidade: “Eu
gostaria que hoje nos perguntássemos todos: Somos ainda uma Igreja capaz de
aquecer o coração?”.
2. A reforma da Igreja a partir da missão, e não da
burocracia ou da ideologia
Verdadeiramente, o Papa defende “toda uma dinâmica de
reforma das estruturas eclesiais” que se tornaram obsoletas. Mas, cuidado! A
reforma deve ser feita a partir de um critério específico: a missão, e não a
sofisticação administrativa… A “mudança das estruturas” (das caducas para as
novas) não é “fruto de um estudo de organização do sistema funcional
eclesiástico. (…) O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os
corações dos cristãos é justamente a missionariedade”.
Encontramos aqui, na alocução do Papa Francisco aos
bispos latino-americanos, uma reflexão de fundo que já é aquela de alguns
bispos europeus, que apelam a uma verdadeira conversão pastoral, e que o Papa
apresenta sob a forma de um verdadeiro exame de consciência. O Papa exorta a
uma revolução pastoral mais que administrativa. O Papa denuncia o funcionalismo
que “olha para a eficácia”, que se deixa fascinar pelas estatísticas e “reduz a
realidade da Igreja à estrutura de uma Ong”.
A partir daí, o Papa Francisco define as “tentações
do discípulo missionário”, situando, como bom jesuíta, o desafio sob a
perspectiva do discernimento, e, portanto, do combate espiritual contra “o
espírito mau” que leva à “ideologização” da mensagem evangélica. Ele
lista quatro desvios, agrupando dois a dois os extremos, progressistas e
conservadores:
A redução socialista, “uma pretensão interpretativa
com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais”. Ela recobre os
campos mais variados: do liberalismo de mercado às categorias marxistas;
A ideologização psicológica. Trata-se de uma
aproximação “elitista” que reduz o encontro com Cristo a uma dinâmica de
autoconhecimento, sem transcendência;
A proposta gnóstica, dos reformistas inspirados no
“Iluminismo”. O Papa explicou que ele recebia, desde o começo do pontificado,
cartas de fiéis, pedindo pelo “casamento dos sacerdotes e a ordenação das boas
irmãs”, mas que a reforma necessária da Igreja, segundo ele, não se situa neste
nível.
A proposta pelagiana, aqueles católicos que procuram
“uma restauração de condutas e formas superadas” ou uma “segurança” doutrinal e
disciplinar.
3. Dar vida à colegialidade com os leigos e a
descentralização em relação a Roma
Francisco recorda a importante valorização dos leigos
na missão: “Nós, Pastores, Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção
da missão dos fiéis e damos-lhes a liberdade para irem discernindo, de acordo
com o seu caminho de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los
e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida
submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do
bem da Igreja e pela sua Missão no mundo?”. O Papa também pediu aos bispos para
confiar no “talento” de seu rebanho “para encontrar novas rotas”. Ao diabo a
autocracia: “O bispo deve guiar, o que não é o mesmo que dominar”.
Ecoando o que vem dizendo desde a sua eleição, o Papa
denuncia o clericalismo: “Na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade
pecadora: o pároco clericaliza e o leigo pede-lhe por favor que o clericalize,
porque, no fundo, é mais cómodo”.
Como solução, o Papa recorda a importância dos conselhos:
“Tanto estes como os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Económicos
são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planeamento
pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos
muito atrasados nisso”.
Ansiosamente aguardado sobre o tema da colegialidade entre
bispos, Francisco reabilita a vitalidade local, em detrimento de uma
abordagem centrada em Roma. Rompendo com a visão de seus predecessores, que
desafiaram a autonomia das estruturas nacionais, o Papa Francisco valoriza
as “Conferências Episcopais” como “um espaço vital”: “Faz falta, pois, uma
progressiva valorização do elemento local e regional. Não é suficiente a
burocracia central, mas é preciso fazer crescer a colegialidade e a
solidariedade; será uma verdadeira riqueza para todos”.
Esta visão confirma a atitude de Francisco na sua
vontade de realinhar o papado como serviço da unidade. Ele se considera
primeiro como bispo, em vez de Papa, como ele lembrou várias vezes no Rio, seja
aos jovens, seja aos bispos: “Eu gostaria de falar de bispo para bispo”,
confidencia aos seus interlocutores do CELAM.
Não é mera coincidência se o Papa aborda, na sua “encíclica
oculta”, questões de método de trabalho. Ele lembrou que o encontro dos bispos
latino-americanos (CELAM), em Aparecida, em 2007, não foi construído a
partir do método romano usado noutros encontros do CELAM, e em Sínodos
Romanos, ou seja, o método do Instrumentum laboris. Com este jargão
se denomina o documento que define o tom dos debates, cujo conteúdo tem a
tendência de bloquear os debates subsequentes. O Papa implora por intercâmbios
a partir de uma consulta às bases, sem esquemas pré-mastigados pela burocracia
eclesial. Isto já foi uma exigência dos Padres do Concílio Vaticano II, na
sua abertura.
4. Retomar o diálogo com o mundo actual
Sem rodeios, o Papa voltou aos fundamentos do Vaticano II,
citando a famosa fórmula introdutória da Gaudium et Spes: “As alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.
Atento aos sinais dos tempos, o Papa evoca a questão da
adaptação às “questões existenciais do homem de hoje, especialmente das novas
gerações, prestando atenção à sua linguagem”, e leva em conta a existência de
universos culturais extremamente diferentes; “Numa mesma cidade, existem vários
imaginários colectivos que configuram ‘diferentes cidades’”. O Papa insiste na
consideração das “tribos”, que se reúnem por afinidades, das megalópoles: “Se
continuarmos apenas com os parâmetros da ‘cultura de sempre’, fundamentalmente
uma cultura de base rural, o resultado acabará anulando a força do Espírito
Santo. Deus está em toda a parte: há que saber descobri-lo para poder
anunciá-lo no idioma dessa cultura; e cada realidade, cada idioma tem um ritmo
diferente”. Encontramos aqui a paixão jesuíta pela inculturação.
De acordo com o Papa Francisco, a missão é uma tensão
permanente: “Não existe o discipulado missionário estático. O discípulo
missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência está em tensão para
a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão. Não admite a
auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a
quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projectado
para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro
com os homens que esperam o anúncio. (…) No anúncio evangélico, falar de
‘periferias existenciais’ descentraliza e, habitualmente, temos medo de sair do
centro. O discípulo-missionário é um ‘descentrado’: o centro é Jesus Cristo,
que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais”.
Para além da sua crítica sobre o medo “de deixar o centro”,
o Papa questiona uma visão centrada no umbigo da Igreja católica: “Quando a
Igreja se erige em ‘centro’, funcionaliza-se e, pouco a pouco, transforma-se numa
ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele ‘mysterium
lunae’ de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada vez mais
auto-referencial, e enfraquece-se a sua necessidade de ser missionária. De
‘Instituição’ transforma-se em ‘Obra’. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo
Administradora; de Servidora transforma-se em ‘Controladora’. Aparecida quer
uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora, mais facilitadora da fé que controladora da
fé”. A Igreja não é uma alfândega, já disse noutra ocasião.
5. Aprender uma cultura da pobreza, da ternura e do
encontro
Encontramos aqui as manias de Jorge Mario Bergoglio,
que cutuca as “pastorais ‘distantes’, pastorais disciplinares que privilegiam
os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais… obviamente sem
proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a ‘revolução da ternura’, que
provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais estruturadas com tal dose de
distância que são incapazes de atingir o encontro: encontro com Jesus Cristo,
encontro com os irmãos. Deste tipo de pastoral podemos, no máximo, esperar uma
dimensão de proselitismo, mas nunca levam a alcançar a inserção nem a pertença
eclesiais”.
Neste contexto, a conversão pastoral cabe ao próprio bispo,
que deve ser um modelo: “Os Bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas,
pais e irmãos, com grande mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que
amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a
pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham
‘psicologia de príncipes’. Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos
de uma Igreja sem viver na expectativa de outra”. O Papa mencionou claramente o
carreirismo daqueles que buscam uma “promoção” para dioceses de maior
prestígio.
[1] Leonardo Boff (*1938)
doutorou-se em teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia
sistemática e ecuménica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de
ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
Conta-se entre um dos iniciadores da teologia da
libertação. É assessor de movimentos populares. Conhecido como professor e
conferencista no país e no estrangeiro nas áreas de teologia, filosofia, ética,
espiritualidade e ecologia. Em 1985 foi condenado a um ano de silêncio
obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e
poder (Record).
A partir dos anos 80 começou a aprofundar a questão
ecológica como prolongamento da teologia da libertação, pois não somente se
deve ouvir o grito do oprimido mas também o grito da Terra porque ambos devem
ser libertados. Em razão deste compromisso participou da redacção da Carta da
Terra junto com M. Gorbachev, S.Rockfeller e outros. Escreveu vários livros e
foi agraciado com vários prémios.
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