segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A TRADIÇÃO DE JESUS VS. A RELIGIÃO CRISTÃ




Para se entender correctamente o Cristianismo torna-se necessário algumas distinções, aceites pela grande maioria dos estudiosos. Assim, importa distinguir entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Sob o Jesus histórico entende-se o pregador e profeta de Nazaré como realmente existiu sob César Augusto e Pôncio Pilatos. O Cristo da fé é o conteúdo da pregação dos discípulos que vêem nele o Filho de Deus e o Salvador.

Outra distinção importante é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a mensagem originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta redefinindo as relações do ser humano com Deus (filhos e filhas), com os outros (todos irmãos e irmãs) com a sociedade (centralidade dos pobres) e com o universo (a gestação de um novo céu e uma nova terra). A Igreja não é o Reino de Deus mas uma construção história para levar avante a causa do Reino. Encarnou-se na cultura ocidental mas também em outras como na oriental e na copta.

Outra distinção importante é entre a Tradição de Jesus e a religião cristã. A Tradição de Jesus situa-se anteriormente à escritura dos evangelhos, embora esteja contida neles. Os evangelhos foram escritos de 30 a 60 anos depois da execução de Jesus. Nesse entretempo já se haviam organizado comunidades e igrejas, com suas tensões internas naturais às instituições. Os evangelhos reflectem esta realidade. Não pretendem ser livros históricos, mas de edificação e de difusão da vida e da mensagem de Jesus como Salvador do mundo.

Dentro deste emaranhado, o que significa a Tradição de Jesus? É aquele núcleo duro, aquele conteúdo que cabe numa casca de noz e que representa a intenção originária e a prática de Jesus (ipsissima intentio et acta Jesu) antes das interpretações que posteriormente se fizeram dele. Esta pode ser resumida nos seguintes pontos entre outros:

Em primeiro lugar vem o “sonho” de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução absoluta da história e do universo, proposta conflituosa pois opunha-se ao Reino de César. Depois a sua experiência pessoal de Deus que a transmitiu aos seguidores: Deus é Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. A sua característica especial é a misericórdia, pois ama até os ingratos e maus (Lc 6, 35). Em seguida prega e vive o amor incondicional ao outro que é posto na mesma altura que o amor a Deus. A centralidade reside nos pobres e invisíveis. Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino, não pela sua condição moral, mas porque são privados de vida, o que leva o Deus vivo a optar por eles. Neles se esconde o próprio Cristo (Mt 25, 40). Outro ponto importante é a comunidade. Ele escolheu doze para viverem com ele; o número doze é simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a comunidade de todos os povos, feitos Povo de Deus. Por fim é o uso do poder. Só se legitima aquele uso que é serviço e o seu portador deve procurar o último lugar.

Este conjunto de valores e visões constitui a Tradição de Jesus. Como se depreende, não se trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era ensinar a viver e não criar uma nova religião com fregueses piedosos. A Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial ou religioso.

Ocorre que essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, a religião cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas Igrejas especialmente a Igreja romano-católica. Elas caracterizam-se por serem instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones jurídicos. A Igreja católico-romana, concretamente, organizou-se em redor da categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres. Ela detém as decisões e o monopólio da palavra. É hierárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela caiu na tentação de se identificar com a Tradição de Jesus que é maior que a Igreja.

Esse tipo de tradição histórica cobriu de cinzas grande parte da originalidade e do fascínio da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas estão em crise, pois a maioria se colocou como fim em si mesmo e não como caminho para Jesus.

O próprio Jesus entrevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adianta observar as leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro” (Mt 23, 23).


Actualizemos: Onde reside o fascínio da figura e dos discursos do Papa Francisco? Reside no facto de se ligar mais à Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem antes do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà Cattolica). Sem essa inversão o Cristianismo perde “a frescura e a fragância do evangelho” e transforma-se numa ideologia e numa obsessão doutrinária.


Não há outro caminho para a recuperação da credibilidade perdida da Igreja senão voltar à Tradição de Jesus como o faz sabiamente o Papa Francisco.




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