quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Habemus Papam




Acusado por um conservador norte-americano de ser marxista, Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, negou sê-lo, mas disse que não se sentia ofendido, por ter conhecido ao longo da sua vida muitos marxistas que eram boas pessoas.
A declaração do papa, evitando atacar ou demonizar os marxistas, e atribuindo-lhes a condição de comuns mortais, com direito a ter sua visão de mundo e a defendê-la, é extremamente importante, no momento que estamos a viver agora.
A ascensão irracional do anticomunismo mais obtuso e retrógrado, em todo o mundo baseia-se em manipulação canalha, com que se tenta, por todos os meios, inverter e distorcer a história, a ponto de se estar a criar uma absurda realidade paralela.
Estabelecem-se, financiados com dinheiro da direita fundamentalista, “museus do comunismo”; surgem por todo mundo, como nos piores tempos da Guerra Fria, redes de organizações anticomunistas e/ou antimarxistas, com a desculpa de se defender a democracia; atribuem-se, alucinadamente, de forma absolutamente fantasiosa, 100 milhões de mortos ao comunismo.
Procurar associar, até do ponto de vista iconográfico, o marxismo ao nacional-socialismo, quando, se não fossem a Batalha de Estalinegrado, em que os alemães e os seus aliados perderam 850 mil homens, e a Batalha de Berlim, vencidas pelas tropas do Exército Vermelho – que cercaram e ocuparam a capital alemã e obrigaram Hitler a suicidar-se, como um rato, no seu covil – a Alemanha nazi teria tido tempo de desenvolver sua própria bomba atómica e não teria sido derrotada.
Quem compara o socialismo ao nazismo, por uma questão de semântica, esquece-se de que, sem a heróica resistência, o complexo industrial-militar, e o sacrifício dos povos da União Soviética – que perdeu na Segunda Guerra Mundial 30 milhões de habitantes – boa parte dos anticomunistas de hoje, incluindo católicos não arianos e sionistas, ter-se-iam transformado em sabão nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Auschwitz, Birkenau e outros campos de extermínio.
Num mundo de nações, em que padres fascistas pregam abertamente, na internet e fora dela, o culto ao ódio, e a mentira da excomunhão automática de comunistas, as declarações do papa Francisco, lembrando que os marxistas são pessoas normais, como quaisquer outras – e não são os monstros apresentados pela extrema-direita fundamentalista e revisionista sob a farsa do “marxismo cultural” – representam um apelo à razão e um alento.
Depois de anos dominada pelo conservadorismo, podemos dizer, pelo menos até agora, que Habemus Papam, com a clareza do fumo branco saindo, na Praça de São Pedro, em dia de conclave, das veneráveis chaminés do Vaticano.
Um Papa com “P” maiúsculo, preparado para fortalecer a Igreja, com o equilíbrio e o exemplo do Evangelho, e a inteligência, o sorriso, a determinação e a energia de um Pastor que merece ser amado e admirado pelo seu rebanho.
O que seria de nós, se a Alemanha Hitleriana tivesse tido mais tempo na 2ª Grande Guerra…?


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A TRADIÇÃO DE JESUS VS. A RELIGIÃO CRISTÃ




Para se entender correctamente o Cristianismo torna-se necessário algumas distinções, aceites pela grande maioria dos estudiosos. Assim, importa distinguir entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Sob o Jesus histórico entende-se o pregador e profeta de Nazaré como realmente existiu sob César Augusto e Pôncio Pilatos. O Cristo da fé é o conteúdo da pregação dos discípulos que vêem nele o Filho de Deus e o Salvador.

Outra distinção importante é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a mensagem originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta redefinindo as relações do ser humano com Deus (filhos e filhas), com os outros (todos irmãos e irmãs) com a sociedade (centralidade dos pobres) e com o universo (a gestação de um novo céu e uma nova terra). A Igreja não é o Reino de Deus mas uma construção história para levar avante a causa do Reino. Encarnou-se na cultura ocidental mas também em outras como na oriental e na copta.

Outra distinção importante é entre a Tradição de Jesus e a religião cristã. A Tradição de Jesus situa-se anteriormente à escritura dos evangelhos, embora esteja contida neles. Os evangelhos foram escritos de 30 a 60 anos depois da execução de Jesus. Nesse entretempo já se haviam organizado comunidades e igrejas, com suas tensões internas naturais às instituições. Os evangelhos reflectem esta realidade. Não pretendem ser livros históricos, mas de edificação e de difusão da vida e da mensagem de Jesus como Salvador do mundo.

Dentro deste emaranhado, o que significa a Tradição de Jesus? É aquele núcleo duro, aquele conteúdo que cabe numa casca de noz e que representa a intenção originária e a prática de Jesus (ipsissima intentio et acta Jesu) antes das interpretações que posteriormente se fizeram dele. Esta pode ser resumida nos seguintes pontos entre outros:

Em primeiro lugar vem o “sonho” de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução absoluta da história e do universo, proposta conflituosa pois opunha-se ao Reino de César. Depois a sua experiência pessoal de Deus que a transmitiu aos seguidores: Deus é Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. A sua característica especial é a misericórdia, pois ama até os ingratos e maus (Lc 6, 35). Em seguida prega e vive o amor incondicional ao outro que é posto na mesma altura que o amor a Deus. A centralidade reside nos pobres e invisíveis. Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino, não pela sua condição moral, mas porque são privados de vida, o que leva o Deus vivo a optar por eles. Neles se esconde o próprio Cristo (Mt 25, 40). Outro ponto importante é a comunidade. Ele escolheu doze para viverem com ele; o número doze é simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a comunidade de todos os povos, feitos Povo de Deus. Por fim é o uso do poder. Só se legitima aquele uso que é serviço e o seu portador deve procurar o último lugar.

Este conjunto de valores e visões constitui a Tradição de Jesus. Como se depreende, não se trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era ensinar a viver e não criar uma nova religião com fregueses piedosos. A Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial ou religioso.

Ocorre que essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, a religião cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas Igrejas especialmente a Igreja romano-católica. Elas caracterizam-se por serem instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones jurídicos. A Igreja católico-romana, concretamente, organizou-se em redor da categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres. Ela detém as decisões e o monopólio da palavra. É hierárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela caiu na tentação de se identificar com a Tradição de Jesus que é maior que a Igreja.

Esse tipo de tradição histórica cobriu de cinzas grande parte da originalidade e do fascínio da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas estão em crise, pois a maioria se colocou como fim em si mesmo e não como caminho para Jesus.

O próprio Jesus entrevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adianta observar as leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro” (Mt 23, 23).


Actualizemos: Onde reside o fascínio da figura e dos discursos do Papa Francisco? Reside no facto de se ligar mais à Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem antes do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà Cattolica). Sem essa inversão o Cristianismo perde “a frescura e a fragância do evangelho” e transforma-se numa ideologia e numa obsessão doutrinária.


Não há outro caminho para a recuperação da credibilidade perdida da Igreja senão voltar à Tradição de Jesus como o faz sabiamente o Papa Francisco.




segunda-feira, 30 de setembro de 2013

COM O PAPA FRANCISCO O TERCEIRO MUNDO ENTROU NO VATICANO



São notórias as muitas inovações que o Papa Francisco, bispo de Roma como gosta de ser chamado, introduziu nos hábitos papais e no estilo de presidir a Igreja na ternura, na compreensão, no diálogo e na compaixão.

Não são poucos os que ficam perplexos, pois estavam habituados ao estilo clássico dos papas, esquecidos de que este estilo é herdado dos imperadores romanos pagãos, desde o nome de “papa” até o manto sobre os ombros (mozetta), todo adornado, símbolo do absoluto poder imperial, prontamente rejeitado por Francisco.

Vale lembrar sempre de novo que o actual Papa vem de fora, da periferia da Igreja central europeia. Vem de outra experiência eclesial, com novos costumes e outra forma de sentir o mundo com suas contradições. Ele, conscientemente, o expressou na sua longa entrevista à revista jesuíta “Civiltà Catolica”: “As Igrejas jovens desenvolvem uma síntese de fé, cultura e vida em devir, e, portanto, diferente da desenvolvida pelas Igrejas mais antigas.” Estas não são marcadas pelo devir mas pela estabilidade e custa-lhes incorporar elementos novos provindos da cultura moderna, secular e democrática.

Aqui, o Papa Francisco enfatiza a diferença. Tem consciência de que vem de outra maneira de ser Igreja, amadurecida no Terceiro Mundo. Este caracteriza-se pelas profundas injustiças sociais, pelo número absurdo de favelas que circundam quase todas as cidades, pelas culturas originárias sempre desprezadas e pela herança da escravidão dos afrodescendentes, submetidos a grandes discriminações. A Igreja entendeu que além da sua missão especificamente religiosa, não pode negar-se a uma missão social urgente: estar do lado dos fracos e oprimidos e empenhar-se pela sua libertação. Nos vários encontros continentais dos bispos latino-americanos e caribenhos (Celam) amadureceu a opção preferencial pelos pobres contra sua pobreza e a evangelização libertadora.

O Papa Francisco vem deste caldo cultural e eclesial. Aqui, tais opções com as suas reflexões teológicas, com as formas de viver a fé em redes de comunidades e com as celebrações que incorporam o estilo popular de rezar a Deus, são coisas evidentes. Mas não o são para os cristãos da velha cristandade europeia, carregada de tradições, teologias, catedrais e um sentimento do mundo impregnado pelo estilo greco-romano-germânico de articular a mensagem cristã. Por vir de uma Igreja que deu centralidade aos pobres, visitou primeiramente os refugiados na ilha de Lampedusa, depois, em Roma, o centro dos jesuítas e em seguida os desempregados da Córsega. Isso é natural nele mas é quase um “escândalo” para os curiais e inédito para os demais cristãos europeus. A opção pelos pobres, reafirmada pelos últimos papas, era só retórica e conceptual. Não havia o encontro com o pobre real e sofredor. Com Francisco dá-se exactamente o contrário: o anúncio é prática afectiva e efectiva.

Talvez estas palavras de Francisco esclareçam o seu modo de viver e de ver a missão da Igreja: “Eu vejo a Igreja como um hospital de campanha após uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem colesterol e glicose altos! É preciso curar as feridas. Depois poder-se-á falar de todo o resto”. “A Igreja – prossegue – por vezes se fechou em pequenas coisas, pequenos preceitos. A coisa mais importante, ao invés, é o primeiro anúncio: ‘Jesus o salvou!’. Portanto, os ministros da Igreja, em primeiro lugar, devem ser ministros de misericórdia e as reformas organizativas e estruturais são secundárias, ou seja, vêm depois porque a primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser pessoas capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar com elas na noite, de saber dialogar e também entrar na noite delas, na escuridão delas sem se perder. O povo de Deus – conclui – quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado”. No Brasil, falando aos bispos latino-americanos pediu-lhes para fazerem a “revolução da ternura”.

Portanto, a centralidade não é ocupada pela doutrina e pela disciplina, tão dominantes nos últimos tempos, mas pela mensagem de Jesus e pela pessoa humana concreta com buscas e indagações seja ela crente ou não, como o mostrou em diálogo com o não crente e ex-editor do diário romano La Reppubblica, Eugenio Scalfari. São novos ares que sopram das novas igrejas periféricas que arejam toda a Igreja. A primavera de facto está achegar e promissora.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

O CRISTIANISMO EM POUCAS PALAVRAS



Há pouca gente, cristãos ou não, que questionam: o que quer efectivamente o cristianismo? Cristo – de onde procede o “cristianismo” –, o que pretendeu quando passou entre nós, há mais de dois mil anos?

A resposta deve, por um momento, esquecer todo o aparato doutrinário criado ao longo da história e ir directamente ao essencial. E este “essencial” deve poder expressar-se de tal modo que o homem da rua possa entendê-lo.

Jesus não começou a anunciar-se a si mesmo ou à Igreja. Anunciou o Reino de Deus, que significa o sonho de uma revolução absoluta que se propõe transformar todas as relações que se encontram deturpadas, no modo pessoal, social, cósmico e, especialmente, com referência a Deus. Este Reino começa quando as pessoas aderem a este anúncio de esperança e assumem a ética do Reino: amor incondicional, a misericórdia, a fraternidade sem fronteiras, a aceitação humilde de Deus vivo como Pai de infinita bondade.

Além de proclamar o Reino de Deus, qual é a intenção original de Jesus? Os apóstolos fizeram esta pergunta directamente a Jesus, usando um subterfúgio linguístico típico naquele tempo: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Isto é o mesmo que pedir: "Dá-nos um resumo da tua mensagem, qual é a tua proposta?” Jesus responde com a Oração do Pai Nosso. É a “ipsissima vox Jesu”: a palavra que saiu, sem dúvida, da boca do Jesus histórico.

Nesta oração está o mínimo dos mínimos da mensagem de Jesus: Deus-Abba e o seu reino, o ser humano e as suas necessidades. Mais resumidamente: trata-se do Pai nosso e do pão nosso no arco do sonho do Reino de Deus. Aqui se encontram os dois movimentos: um em direcção ao céu, onde se encontra Deus como Abba, nosso Pai amado e o seu projecto de resgate de toda a criação (o Reino); o outro em direcção à terra, onde se encontra o pão nosso sem o qual não podemos viver. Note-se que não se diz “meu Pai”, mas sim “Pai Nosso”, ou “meu pão”, mas “pão nosso de cada dia.”

Podemos apenas dizer amém, se unirmos os dois pólos: o Pai com o pão. O cristianismo realiza-se nesta dialéctica: anunciar um Deus bom porque é Pai amado que tem um projecto de total libertação e, ao mesmo tempo à luz desta experiência, construir colectivamente o pão como meio de vida para todos.

Sabemos da “tragédia” ocorrida com Jesus. O Reino foi rejeitado e o seu proclamador executado na cruz. Mas Deus tomou partido por Jesus: ressuscitou-O. A ressurreição não é a reanimação de um cadáver mas o surgimento do “novo Adão” (1 Coríntios 15,45). A ressurreição é a realização do sonho do Reino na pessoa de Jesus como antecipação do que vai acontecer com todos e com o universo inteiro.

A execução de Jesus e a sua ressurreição abriram um espaço para que surgisse o movimento de Jesus, as primeiras comunidades a nível familiar e local e, por fim, a Igreja como comunidade de fiéis e comunidade de comunidades.

Leonardo Boff, no seu livro “Cristianismo. Lo mínimo de lo mínimo” faz uma retrospectiva do que significou o cristianismo na história, nos seus momentos de sombras e de luz, até chegar ao dia de hoje com o desafio de encontrar o seu lugar no processo de globalização da humanidade. Este descobre-se vivendo numa Casa Comum, o planeta Terra, agora seriamente ameaçado por uma crise ecológica generalizada que pode pôr em risco o futuro da nossa civilização, até a sobrevivência da espécie humana.

O Cristianismo pode trazer elementos salvadores porque Deus, segundo as Escrituras judaico-cristãs, é “o soberano amante da vida” (Sabedoria 11,24) e não vai permitir que a vida e o mundo, assumidos pelo Verbo, desapareçam da história.


terça-feira, 27 de agosto de 2013

AS PRIMEIRAS MULHERES CRISTÃS (3)





Não confronta homens com mulheres, nem vice-versa.

Voltemos ao tema principal. Sabemos, por um lado, que o gesto de Jesus é contrário: inicia o seu caminho de libertação precisamente no reverso da sociedade estabelecida (com as crianças, os pobres, os enfermos, os pecadores) para mudar a ordem da história e assim abarcar a todos, em transformação messiânica.

O movimento de Jesus foi de renovação dentro do judaísmo”[1]. Ele era judeu e os seus seguidores foram judeus e judias do primeiro século. Quando falamos de Jesus e do seu movimento é sempre do ponto de vista cristão. Costumamos deixar de lado o facto de que ele era judeu e os seus seguidores também. Reconstruir o movimento de Jesus como um movimento judaico não é uma tarefa fácil, especialmente a reconstrução da história das mulheres. “Até o momento não existe uma reconstrução judaica crítica, feminista, do judaísmo do primeiro século”[2].

No movimento de Jesus, as pessoas que viviam à margem da sociedade eram acolhidas. O cristianismo originou-se dentro do judaísmo da Palestina num contexto greco-romano. São duas culturas de domínio patriarcal em que a mulher tem um papel secundário. “A cultura e a ideologia patriarcal greco-romanas marcaram definitivamente o mundo ocidental”[3]. As primeiras comunidades surgiram em ambiente judaico-palestiniano, depois expandiram-se para outras regiões no mundo greco-romano. Destaca-se a presença das mulheres no movimento de Jesus como nas comunidades que surgiram.

O cristianismo tinha propostas diferentes dos restantes modelos; traz uma nova forma de relacionamento – a mulher é tratada “em pé de igualdade”. Depois da ressurreição, essas mulheres vão impulsionar o movimento cristão reunindo-se nas suas casas, que ficaram conhecidas como as “igrejas domésticas”. Certamente, as mulheres que se integraram no grupo de Jesus tinham uma relativa autonomia em relação ao contexto cultural do seu tempo[4].

A maioria dos grupos cristãos primitivos reunia-se nas casas. No Novo Testamento há várias passagens que fazem referência às “comunidades domésticas” (Gl 6,10; 1Cor 16,19; Rm 16,1-16; Cl 4,15; Act 16,13-15). Elas eram a base do movimento cristão. Nas igrejas domésticas, os cristãos se reuniam para o culto, pregação da palavra, partilha da mesa social e eucarística. A igreja doméstica oferecia iguais oportunidades às mulheres, já que elas estavam no espaço em que dominavam. Essas igrejas foram muito importantes no movimento missionário, porque ofereciam espaço e apoio, e onde as mulheres exerciam realmente a sua liderança. Já era costume no mundo greco-romano as mulheres ricas abrirem as suas casas para cultos religiosos. As cristãs não eram o único grupo que acolhia a comunidade em suas casas. Também havia cultos domésticos nas comunidades da Diáspora, liderados por mulheres judias[5].
Segundo Branick, quando os evangelhos descrevem as mulheres seguindo Jesus, servindo e ouvindo instruções, parecem reflectir as normas daquele tempo[6]. Essa prática não é vista como surpresa ou inovação por parte de Jesus. Uma norma que Jesus pode ter violado deliberadamente é o fato de a mulher conversar com estranhos (Jo 4,7).

Historiadores concordam que o cristianismo era atraente porque na subcultura cristã “as mulheres tinham um status mais elevado do que no mundo greco-romano”. O número de homens era maior no contexto greco-romano, pela alta mortalidade das mulheres no parto, aborto e pelo infanticídio feminino. Dentro do cristianismo a vida familiar, desenvolvia-se de modo diverso e as mulheres viviam de forma diferente. As mulheres são a maioria na conversão ao cristianismo. Stark, citando Fox, afirma que “a predominância de mulheres nos quadros de filiação das Igrejas era reconhecida como tal por cristãos e pagãos”[7].

Entre os pagãos, as viúvas que não contraíssem segundas núpcias no prazo de dois anos, eram multadas. Ao casar-se novamente perdia sua herança para o marido e se tornavam propriedade dele. Já no cristianismo, tinha-se um profundo respeito pelas viúvas e não se encorajava um segundo casamento. Com isso as viúvas ricas continuavam administrando sua herança e as viúvas pobres eram amparadas pelas comunidades e tinham liberdade de escolha para contrair segundas núpcias[8].

Com o advento do cristianismo as mulheres conseguem uma certa autonomia. Procura-se viver sem a discriminação entre homem e mulher. As casas delas transformam-se em igrejas domésticas e passam a acolher as pessoas necessitadas, como as viúvas. Elas tornam-se líderes nas suas casas e com elas nascem as primeiras comunidades cristãs. A mensagem de Jesus Cristo passa a ser anunciada, pregada por essas mulheres que se tornam mensageiras do Evangelho.

Nos Evangelhos, a presença das mulheres como testemunhas, é uma forma de intensificar a importância delas. Além de revelar duas ou três discípulas mulheres, além de Maria Madalena, é possível reflectir que o discurso sobre o encontro de Maria Madalena com o Cristo Ressuscitado é a história original e que os evangelhos sinópticos multiplicaram o número de mulheres participantes.

Ao exercerem liderança na comunidade, as mulheres descobriam as suas potencialidades, tornavam-se pessoas dignificadas. A liderança dava status à mulher. Não se cansavam nem tinham medo de levar a mensagem do Ressuscitado. Mesmo na época das perseguições elas enfrentavam as torturas e o martírio em nome da sua fé.

As grandes colaboradoras de Paulo foram as mulheres. Enquanto ele fazia as suas viagens missionárias, quem liderava e levava para frente as comunidades eram Maria, Júnia, Febe, Priscila, Trifosa e muitas outras. Os discípulos também tinham as suas comunidades juntamente com outras discípulas. Deduzimos que a comunidade de João fosse composta por um número razoável de mulheres, pois as mulheres nas narrativas joaninas são apresentadas como figuras fortes, carismáticas.

Conseguirá o Papa Francisco “refundar” o Cristianismo, como Jesus o criou?




[1] THEISSEN, Gerd. Sociologia del movimento de Jesús. Santader: Sal Terrae, 1979. p. 7.
  FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. p. 133.
[2] FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. p. 133-136.
[3] STRÖHER, Marga J. “A igreja na cada dela”. São Leopoldo: IEPG, 1996. p. 5.
[4] GASS, Ildo Bohn. Período grego e vida de Jesus. São Paulo: Cebi/Paulus, 2005. p. 180.
[5] FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. p. 209-212.
[6] BRANICK, Vincent. A igreja doméstica nos escritos de Paulo. São Paulo: Paulus, 1994. p. 51.
[7] Fox 1987, citado por STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 113.
[8] STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 120.

sábado, 24 de agosto de 2013

AS PRIMEIRAS MULHERES CRISTÃS (2)




Uma família sem hierarquias

Assim, perante isto, situamo-nos no que se poderá chamar inversão do Evangelho. A ordem actual deste mundo imperioso, sexista, dominador sustém-se a partir da defesa de umas funções estabelecidas hierárquica e marginalizada: a imposição do pai sobre o filho, do homem sobre a mulher, do rico sobre o pobre, do bom sobre o mau, do saudável sobre o doente, etc. Pois bem, num gesto expressamente provocador, Jesus inverte esta estrutura de valores: chama bem-aventurados aos pobres, cura os enfermos, oferece o reino aos que são considerados pecadores por esta sociedade. A partir desse fundo é entendida a sua atitude para com as crianças.

Na ordem normal da sociedade, para defender o estabelecido (tradicionalistas, fariseus) ou para o derrubar pela força (revolucionários, zelotas[1]) as crianças interessam pouco ou são vistas como secundárias. Os que importam, os que valem, são os grandes, os poderosos, os triunfadores (em função da tradição ou da revolução). É, pois, contra isto, numa atitude verdadeiramente provocatória, que Jesus diz e mostra que o mais importante são as crianças: precisamente aqueles que estão nas mãos dos outros, que não têm força por si mesmos e se encontram à mercê dos demais no seu caminho. É evidente que aqui não importa o sexo (meninos ou meninas). Eles são importantes enquanto humanos e humanos com necessidades. Assim deve ser interpretado Mc 9, 33-37 e 10,13-15 que explica essa inversão central do evangelho [Chegaram a Cafarnaúm e, quando estavam em casa, Jesus perguntou: “Que discutíeis pelo caminho? Ficaram em silêncio porque, no caminho, tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior.
Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: “Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.” E, tomando um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse-lhes: “Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou.”] e [Apresentaram-lhe uns pequeninos para que Ele os tocasse; mas os discípulos repreenderam os que os haviam trazido. Vendo isto, Jesus indignou-se e disse-lhes: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os afasteis, porque o Reino de Deus pertence aos que são como eles. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele.”]

Nesta perspectiva de inversão messiânica adquirem importância especial junto das crianças, outro tipo de pessoas que estão necessitadas. No meu ponto de vista, são estes os mais patentes: os pobres face aos ricos, os doentes face aos saudáveis e os pecadores face aos justos. A atitude de Jesus com cada um destes tipos de pessoas é distinta; a sua criatividade e amor actua em cada caso de formas diferentes, Mas em todos se descobre um mesmo tipo de inversão ou mudança escatológica[2] na linha de Lc 1,51-53 e 6, 20-21 [Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias] e [Erguendo os olhos para os discípulos, pôs-se a dizer: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir”].

Este tipo de análise simplista poderia levar-nos a dizer que as mulheres aparecem ante Jesus na linha dos anteriores necessitados, formando, deste modo, uma espécie de classe especial de oprimidos (conjuntamente com as crianças, os pobres, os enfermos e os pecadores). Por isso haveria que amá-los de forma peculiar, num gesto de protecção bondosa e, no fundo, escravizante: deveríamos amar as mulheres de um modo condescendente como a seres humanos (o que não acontecia nesse tempo). Pois bem, contra isso, Jesus ama-as (escuta-as, acolhe-as e dialoga com elas) como com pessoas livres, capazes de entender e de acolher todo o Evangelho de Deus, de igual forma que os homens. De certa forma elas encontravam-se mais subordinadas do que os homens, e nos gestos e palavras de Jesus pode encontrar-se um cuidado especial em valorizá-las.

Jesus não se ocupou das mulheres em especial.

Mas, em geral, devemos acrescentar que Jesus não se ocupou delas somente com uma atitude de compaixão, como um superior se ocupa dos seus inferiores. Jesus respeita-as e valoriza-as num plano de igualdade pessoal, como o dos homens. Recordemos alguns textos e tradições:

– Jesus percorre os caminhos com homens e mulheres, demarcando-se, assim, dos rabinos de Israel que somente acolhiam homens. No entendimento dos rabinos as mulheres eram incapazes de entender a Lei e de explicá-la. Este facto é perfeitamente compreensível numa sociedade patriarcal onde só os homens se encontram socialmente “libertos” para o “lazer” da lei, para o estudo das Santas Escrituras. Pois bem, Jesus não quis instaurar um movimento de letrados, especialistas na ciência sagrada. Busca o mundo novo do “homem” (ser humano) libertado para o reino. Para isso valem igualmente os homens ou as mulheres. Ambos aparecem como iguais perante os dons de Deus e da Sua Graça. Por isto mesmo as mulheres podem segui-lo – e seguem-no – como membros de pleno direito dentro do seu grupo. Jesus não fundou uma escola de especialistas homens que se isolam para o cultivo da lei; Ele ensinou numa espécie de universidade aberta, na escola superior onde homens e mulheres, crianças e maiores, podem escutá-Lo, entendê-Lo e segui-Lo.

– Naquela sociedade patriarcal (em sentido familiar, social e religioso) Jesus condena principalmente o pecado próprio dos homens. À luz do Evangelho é claro que são principalmente os homens com espírito patriarcal \quem recusa mais a Deus, opondo-se ao “direito e graça” dos pobres. Neste sentido mais profundo, podemos afirmar que Jesus veio para destruir as obras do homem (não as da mulher, como foi entendido mais tarde numa interpretação gnóstica). Praticamente são sempre as obras do homem patriarcal (orgulhoso, dominador) as que impedem a chegada do reino. Mas, ao lado desses homens opressores há outros que se encontram oprimidos; também a eles Jesus Cristo oferece o reino.
– Finalmente, Jesus parece haver situado num mesmo plano de opressão e debilidade de homens e mulheres, ao vincular o seu gesto de perdão tanto a cobradores de impostos como a prostitutas (Mt 21,31) [“Qual dos dois fez a vontade ao pai?” Responderam eles: “O primeiro”. Jesus disse-lhes: “Em verdade vos digo: Os cobradores de impostos e as meretrizes vão preceder-vos no Reino de Deus”]. Uns e outros pareciam obrigados a vender o seu corpo (mulheres) ou a honestidade económica (homens) ao serviço de uma sociedade machista que os oprime e utiliza para, seguidamente, os desvalorizar. Os grupos que se encontram ligados a Jesus por uma mesma situação de pecado social; os dois estão unidos a um mesmo caminho de graça, aberto a Deus que os perdoa e os acolhe.

Nesta perspectiva descobrimos o que poderia chamar-se a soberania do Evangelho. Certamente, Jesus não é um reformador social que aceita em parte o que existe para mudá-lo depois ou melhorá-lo. Os reformadores pactuam sempre porque querem partir de algo “bom” (forte) que já existe; desta forma, acabam por ser revendedores, legalistas, distinguindo o que se deve aceitar e o que se deve rejeitar. Jesus, pelo contrário, actua como profeta escatológico: não se pôs a reformar o mundo para o melhorar; Não se ocupa a mudar detalhes; anuncia algo mais profundo, mais definitivo, no fim do mundo velho. Isto situa-nos no centro do Evangelho. Para dizer, na terminologia de Mc 2,18-22; Jesus não vem remendar com um pano novo o velho manto israelita; para isso não lhe vale o odre velho da lei para pôr ali o seu vinho novo. Como enviado escatológico de Deus, anuncia o fim do mundo velho, oferecendo já os sinais e os princípios do seu reino, em atitude de nova criação (Mc 2,18-22) [Estando os discípulos de João e os fariseus a jejuar, vieram dizer-lhe: “Porque é que os discípulos de João e os dos fariseus guardam jejum, e os teus discípulos não jejuam?” Jesus respondeu: “Poderão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com eles? Enquanto têm consigo o esposo, não podem jejuar. Dias virão em que o esposo lhes será tirado; e então, nesses dias, hão-de jejuar.”
“Ninguém deita remendo de pano novo em roupa velha, pois o pano novo puxa o tecido velho e o rasgão fica maior. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho, tal como os odres. Mas vinho novo, em odres novos”].


(Continua)



[1] O termo zelota ou zelote significa literalmente alguém que zela pelo nome de Deus. Apesar da palavra designar nos nossos dias alguém com excesso de entusiasmo, a sua origem prende-se ao movimento político judaico do século I que procurava incitar o povo da Judeia a revoltar-se contra o Império Romano e expulsar os romanos pela força das armas, que conduziu à primeira guerra judaico-romana (66-70).
[2] Relativo à escatologia – Teoria acerca das coisas que hão-de suceder depois do fim do mundo; teoria sobre o fim do mundo e da humanidade.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

AS PRIMEIRAS MULHERES CRISTÃS (1)




Mensagem de Jesus

Antes de mais, quero relembrar alguns dados e reflexões do Novo Testamento sobre as mulheres, para situá-las no princípio da Igreja, tirando a conclusão de que elas não se distinguem dos homens, enquanto cristãs.

O evangelho levou ao limite tanto a liberdade (distinção, independência) como a igualdade (dignidade, valor de cada um) e comunhão (serviço, ajuda mútua) entre os seres humanos. Homens e mulheres aparecem como seres livres: capazes de se realizarem de modo pessoal, a partir da graça de Deus; uns e outras são iguais, sem que se possa falar de prioridade de um sexo sobre o outro; por isso pode haver entre eles uma verdadeira relação humana, mais além das exigências de uma lei ou da natureza que tenha entendido os sexos de forma hierarquizada.


Assim, destaquei a mensagem de Jesus desde o início dos movimentos judaicos do seu tempo: como profeta apocalíptico anunciou a vinda do reino de Deus e realizou os seus sinais sobre o mundo; sabe que na velha ordem social havia opressões de uns sobre os outros; todavia essa ordem antiga terminou e agora a humanidade (homens e mulheres) pode renascer pela graça de Deus para uma vida liberta e de graça. Logicamente, para receber o dom do reino de Deus há que superar as velhas estruturas de opressão (pai e mãe entendidos na sua forma judia), há que romoer a estrutura dominante e bem hierarquizada deste velho mundo. Recordemos as palavras:

Têm que deixar irmãos e irmãs, pai e mãe, casa e campo (Mc 10,29);
Têm que superar um determinado tipo de família e estrutura social (Lc 14,15-24; 18,19);
Têm de estar dispostos a perder tudo e “odiarem-se a si próprios” (Mc 8,34-35; Lc 14,26).

Estes textos transmitem uma forte experiência de ruptura. O Evangelho não pretende sacralizar as condições de vida de uma cidade (sociedade) patriarcal onde tudo se encontra estruturado de acordo com as funções que o próprio Deus teria fundado (suportado) de antemão. Em oposição a uma tradição estratificada e classista, próprio daqueles que defendem como coisa de Deus aquilo que agora existe (a função dominadora dos pais e demais homens, encontramos em Jesus um apelo à criatividade pessoal (individual).

Por isso pede que os seus fiéis rompam a teia de relação anterior. Os que escutam a mensagem do reino tem de se livrar de todos os esquemas de um passado imposto. Por isso, quando se acerca e pede “deixa-me enterrar primeiro o meu pai”, Jesus responde numa forma concisa: “Segue-me e deixa os mortos sepultar os seus mortos” (Mt 8,22).

O pai que um judeu tem de sepultar (manter como autoridade até à morte) é o sinal do domínio patriarcal: é a tradição que vem de há muito, que se expande e mantém por gerações, endossando assim como sagrado a ordem existente (onde os homens impõem o seu domínio). Contra isto, Jesus iniciou um movimento renovador de libertação messiânica. Logicamente há que romper com as ligações anteriores, colocando todos os humanos (homens e mulheres) perante o campo do seu novo nascimento (Mc 9,33-37 e 10,13-16). É aqui, precisamente, que se funda a nova perspectiva messiânica de Cristo, superando assim a velha separação patriarcal que aparta homens e mulheres.

O pai/patriarca homem define a estrutura sacra e social judaica. Evidentemente, não se trata aqui do pai enquanto pessoa débil e necessitada de ajuda dos filhos (como refere bem a tradição que se fala em Mc 7,6-13). O pai a quem se deve deixar, com as leis do seu mundo dos mortos, é o sinal e o princípio que é imposto a partir de cima: é o varão dominador, o chefe genealógico, o senhor da família que mantém submetidos a ele a sua mulher e os seus filhos.

Romper com este pai significa estar disposto a criar uma família de irmãos e irmãs que se sentam em círculo em volta de Jesus para escutar, dialogar e cumprir juntos a vontade de Deus (Mc 3,31-35). De maneira surpreendente e significativa, nessa nova família há lugar para irmãos e irmãs (homens e mulheres) e mães (doadoras de vida), mas não para os pais entendido no modo judaico antigo, patriarcal, autoritário (o mesmo fenómeno se repete em Mc 10,29-30).

Esta lacuna, esta falta do pai, resulta fundamental na visão da nova família messiânica, nas funções de homens e mulheres. O pai antigo tem que perder a sua função e converter-se em irmão/irmã (ou mãe) para se fazer-se cristão. Sobre este vazio, com uma função muito distinta de protecção libertadora e de criatividade gratificante, emerge o Pai dos céus que converte todos os homens e mulheres em irmãos (Mt 23,8-9).


(Continua)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O DURO RECADO QUE O PAPA FRANCISCO DEU AOS BISPOS



Jean Mercier, um publicista francês, se deu conta da gravidade das palavras do Papa Francisco dirigidas aos bispos, arcebispos e cardeais reunidos no Rio por ocasião da Jornada Mundial da Juventude. Foram as palavras mais duras que o Papa usou aqui. Infelizmente não foram comentadas pela imprensa, certamente, porque julga se tratar de assuntos internos da Igreja. De facto são, mas com repercussão enorme na vida pública, lá onde a Igreja se faz presente. Sei de fonte fidedigna, pois a pessoa estava presente, que um dos bispos conservadores com hábitos principescos, apenas comentou irritado: “que discurso ridículo, esse do Papa”. É bom relermos tal mensagem. Jean Mercier nos fez o favor de dar-lhe relevância, coisa que fiz en passant nos meus artigos. Publicou sua matéria la revista La Vie sob o título A encíclica oculta de Francisco no Rio e traduzida para o português pelo IHU de 9 de Agosto de 2013: Leonardo Boff[1]
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Oficialmente, a primeira encíclica do Papa Francisco intitula-se Lumen Fidei, e foi publicada no começo de Julho passado. Mas ela foi escrita principalmente por Bento XVI; Francisco contentou-se em lhe acrescentar uma espécie de posfácio. Na realidade, o papa trabalhava noutros textos, aqueles que iria pronunciar na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e, especialmente, em dois discursos fundamentais, endereçados aos bispos, que ficaram um pouco perdidos no meio da massa de palavras endereçadas aos jovens durante a JMJ
No sábado, 27 de Julho, aos bispos brasileiros, o Papa Francisco abordou questões difíceis e exigentes do domínio da pastoral, num texto muito forte. Na manhã seguinte, ele ampliou o seu propósito através de uma alocução aos bispos vindos de toda a América Latina. O conjunto desses dois discursos constitui uma espécie de encíclica “oficiosa”, verdadeiro programa para o pontificado, cujo fio condutor é uma autocrítica severa e o apelo à conversão da instituição. O veredicto é claro, mesmo sob a forma de eufemismo: “Estamos um pouco atrasados no que se refere à Conversão Pastoral”.
1. Quebrar o tabu em relação às mulheres e o cisma silencioso dos decepcionados com a Igreja
Como nenhum Papa antes dele, Francisco se confronta com a dolorosa questão dos católicos que abandonaram a Igreja, fenómeno atestado na América Latina, mas que é conhecido de todos os países, especialmente os europeus, nos últimos 50 anos. Ele evoca assim “o mistério difícil das pessoas que abandonaram a Igreja” e se deixaram seduzir por outras propostas.
Esta questão, considerada tabu durante muito tempo, é a ocasião para uma severa autocrítica: “Talvez a Igreja lhes apareça demasiado frágil, talvez demasiado longe das suas necessidades, talvez demasiado pobre para dar resposta às suas inquietações, talvez demasiado fria para com elas, talvez demasiado auto-referencial, talvez prisioneira da própria linguagem rígida, talvez lhes pareça que o mundo fez da Igreja uma relíquia do passado, insuficiente para as novas questões; talvez a Igreja tenha respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta”.
O Papa acusa a Igreja de ser de tal maneira exigente em seus “padrões” que desencoraja o conjunto das pessoas: “muitos buscaram atalhos, porque se apresenta demasiado alta a ‘medida’ da Grande Igreja. Também existem aqueles que reconhecem o ideal do homem e de vida proposto pela Igreja, mas não têm a audácia de abraçá-lo. Pensam que este ideal seja grande demais para eles, esteja fora das suas possibilidades; a meta a alcançar é inatingível”.
Uma Igreja chata, rígida, fria, centrada no seu umbigo! Nunca Bento XVI e João Paulo II fizeram semelhante autocrítica. Bergoglio não tem medo de dizer a verdade ao pensar em todos esses que se afastaram dela: “Perante esta situação, o que fazer? Necessitamos de uma Igreja que não tenha medo de entrar na noite deles. Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagueiam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido. (…) Hoje, precisamos de uma Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta”.
O Papa não hesita em tocar em outro assunto tabu na instituição: o lugar das mulheres: “Não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel activo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade”. Embora a menção seja lapidar, é a primeira vez que um Papa reconhece que a Igreja perdeu parte da sua credibilidade em relação às mulheres.
A solução passa, segundo o Papa, pelo exercício da maternidade da Igreja, isto é, pelo exercício da misericórdia. “Ela gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… Por isso, faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, temos hoje poucas possibilidades de nos inserir num mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor”. Nesse campo, há progressos a realizar: “Num hospital de campanha a emergência é curar as feridas”.
A outra dimensão é a empatia afectiva e a proximidade: “Eu gostaria que hoje nos perguntássemos todos: Somos ainda uma Igreja capaz de aquecer o coração?”.
2. A reforma da Igreja a partir da missão, e não da burocracia ou da ideologia
Verdadeiramente, o Papa defende “toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais” que se tornaram obsoletas. Mas, cuidado! A reforma deve ser feita a partir de um critério específico: a missão, e não a sofisticação administrativa… A “mudança das estruturas” (das caducas para as novas) não é “fruto de um estudo de organização do sistema funcional eclesiástico. (…) O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade”.
Encontramos aqui, na alocução do Papa Francisco aos bispos latino-americanos, uma reflexão de fundo que já é aquela de alguns bispos europeus, que apelam a uma verdadeira conversão pastoral, e que o Papa apresenta sob a forma de um verdadeiro exame de consciência. O Papa exorta a uma revolução pastoral mais que administrativa. O Papa denuncia o funcionalismo que “olha para a eficácia”, que se deixa fascinar pelas estatísticas e “reduz a realidade da Igreja à estrutura de uma Ong”.
A partir daí, o Papa Francisco define as “tentações do discípulo missionário”, situando, como bom jesuíta, o desafio sob a perspectiva do discernimento, e, portanto, do combate espiritual contra “o espírito mau” que leva à “ideologização” da mensagem evangélica. Ele lista quatro desvios, agrupando dois a dois os extremos, progressistas e conservadores:
A redução socialista, “uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais”. Ela recobre os campos mais variados: do liberalismo de mercado às categorias marxistas;
A ideologização psicológica. Trata-se de uma aproximação “elitista” que reduz o encontro com Cristo a uma dinâmica de autoconhecimento, sem transcendência;
A proposta gnóstica, dos reformistas inspirados no “Iluminismo”. O Papa explicou que ele recebia, desde o começo do pontificado, cartas de fiéis, pedindo pelo “casamento dos sacerdotes e a ordenação das boas irmãs”, mas que a reforma necessária da Igreja, segundo ele, não se situa neste nível.
A proposta pelagiana, aqueles católicos que procuram “uma restauração de condutas e formas superadas” ou uma “segurança” doutrinal e disciplinar.
3. Dar vida à colegialidade com os leigos e a descentralização em relação a Roma
Francisco recorda a importante valorização dos leigos na missão: “Nós, Pastores, Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis e damos-lhes a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu caminho de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e pela sua Missão no mundo?”. O Papa também pediu aos bispos para confiar no “talento” de seu rebanho “para encontrar novas rotas”. Ao diabo a autocracia: “O bispo deve guiar, o que não é o mesmo que dominar”.
Ecoando o que vem dizendo desde a sua eleição, o Papa denuncia o clericalismo: “Na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade pecadora: o pároco clericaliza e o leigo pede-lhe por favor que o clericalize, porque, no fundo, é mais cómodo”.
Como solução, o Papa recorda a importância dos conselhos: “Tanto estes como os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Económicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planeamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso”.
Ansiosamente aguardado sobre o tema da colegialidade entre bispos, Francisco reabilita a vitalidade local, em detrimento de uma abordagem centrada em Roma. Rompendo com a visão de seus predecessores, que desafiaram a autonomia das estruturas nacionais, o Papa Francisco valoriza as “Conferências Episcopais” como “um espaço vital”: “Faz falta, pois, uma progressiva valorização do elemento local e regional. Não é suficiente a burocracia central, mas é preciso fazer crescer a colegialidade e a solidariedade; será uma verdadeira riqueza para todos”.
Esta visão confirma a atitude de Francisco na sua vontade de realinhar o papado como serviço da unidade. Ele se considera primeiro como bispo, em vez de Papa, como ele lembrou várias vezes no Rio, seja aos jovens, seja aos bispos: “Eu gostaria de falar de bispo para bispo”, confidencia aos seus interlocutores do CELAM.
Não é mera coincidência se o Papa aborda, na sua “encíclica oculta”, questões de método de trabalho. Ele lembrou que o encontro dos bispos latino-americanos (CELAM), em Aparecida, em 2007, não foi construído a partir do método romano usado noutros encontros do CELAM, e em Sínodos Romanos, ou seja, o método do Instrumentum laboris. Com este jargão se denomina o documento que define o tom dos debates, cujo conteúdo tem a tendência de bloquear os debates subsequentes. O Papa implora por intercâmbios a partir de uma consulta às bases, sem esquemas pré-mastigados pela burocracia eclesial. Isto já foi uma exigência dos Padres do Concílio Vaticano II, na sua abertura.
4. Retomar o diálogo com o mundo actual
Sem rodeios, o Papa voltou aos fundamentos do Vaticano II, citando a famosa fórmula introdutória da Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.
Atento aos sinais dos tempos, o Papa evoca a questão da adaptação às “questões existenciais do homem de hoje, especialmente das novas gerações, prestando atenção à sua linguagem”, e leva em conta a existência de universos culturais extremamente diferentes; “Numa mesma cidade, existem vários imaginários colectivos que configuram ‘diferentes cidades’”. O Papa insiste na consideração das “tribos”, que se reúnem por afinidades, das megalópoles: “Se continuarmos apenas com os parâmetros da ‘cultura de sempre’, fundamentalmente uma cultura de base rural, o resultado acabará anulando a força do Espírito Santo. Deus está em toda a parte: há que saber descobri-lo para poder anunciá-lo no idioma dessa cultura; e cada realidade, cada idioma tem um ritmo diferente”. Encontramos aqui a paixão jesuíta pela inculturação.
De acordo com o Papa Francisco, a missão é uma tensão permanente: “Não existe o discipulado missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão. Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projectado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio. (…) No anúncio evangélico, falar de ‘periferias existenciais’ descentraliza e, habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um ‘descentrado’: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais”.
Para além da sua crítica sobre o medo “de deixar o centro”, o Papa questiona uma visão centrada no umbigo da Igreja católica: “Quando a Igreja se erige em ‘centro’, funcionaliza-se e, pouco a pouco, transforma-se numa ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele ‘mysterium lunae’ de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada vez mais auto-referencial, e enfraquece-se a sua necessidade de ser missionária. De ‘Instituição’ transforma-se em ‘Obra’. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo Administradora; de Servidora transforma-se em ‘Controladora’. Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora, mais facilitadora da fé que controladora da fé”. A Igreja não é uma alfândega, já disse noutra ocasião.
5. Aprender uma cultura da pobreza, da ternura e do encontro
Encontramos aqui as manias de Jorge Mario Bergoglio, que cutuca as “pastorais ‘distantes’, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais… obviamente sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a ‘revolução da ternura’, que provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais estruturadas com tal dose de distância que são incapazes de atingir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Deste tipo de pastoral podemos, no máximo, esperar uma dimensão de proselitismo, mas nunca levam a alcançar a inserção nem a pertença eclesiais”.
Neste contexto, a conversão pastoral cabe ao próprio bispo, que deve ser um modelo: “Os Bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham ‘psicologia de príncipes’. Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra”. O Papa mencionou claramente o carreirismo daqueles que buscam uma “promoção” para dioceses de maior prestígio.




[1] Leonardo Boff (*1938) doutorou-se em teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecuménica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Conta-se entre um dos iniciadores da teologia da libertação. É assessor de movimentos populares. Conhecido como professor e conferencista no país e no estrangeiro nas áreas de teologia, filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Em 1985 foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record).
A partir dos anos 80 começou a aprofundar a questão ecológica como prolongamento da teologia da libertação, pois não somente se deve ouvir o grito do oprimido mas também o grito da Terra porque ambos devem ser libertados. Em razão deste compromisso participou da redacção da Carta da Terra junto com M. Gorbachev, S.Rockfeller e outros. Escreveu vários livros e foi agraciado com vários prémios.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O OITAVO SACRAMENTO


“Não existe mãe solteira; existe Mãe…!” (Papa Francisco)




Pensai numa mãe solteira que vai à Igreja, à paróquia e diz a quem a atende:

– Quero Baptizar o meu filho.

– Não, tu não podes porque não és casada – responde-lhe este.

Atentemos que esta mãe teve a coragem de continuar uma gravidez, o que é que encontra? Uma porta fechada. Isto não é zelo! Afasta as pessoas do Senhor! Não abre as portas! E, assim, quando nós seguimos este caminho e esta atitude, não estamos a fazer o bem às pessoas, ao povo de Deus.

Jesus instituiu sete sacramentos e nós, com esta atitude, instituímos o oitavo: O sacramento da alfândega pastoral

Quem se aproxima da Igreja deve encontrar as portas abertas e não fiscais da Fé”. (Papa Francisco)