Nenhum ser humano
tem que vir ao mundo com má reputação, eticamente caluniado.
1. Perguntaram-me
na Feira do Livro: será verdade que alguns biblistas católicos andam empenhados
em dar cabo do pecado original? Respondi que já não era sem tempo,
mas que eu não pertencia a essa tribo e que o melhor seria ir bater a outra
porta. Após uns dedos de conversa, insistiram em conhecer a minha opinião!
Regressei, com esses interlocutores, aos meus tempos de
catequese. Ensinaram-me que as crianças nasciam todas com a alminha suja do
pecado original. Os pais deveriam apressar-se a baptizá-las, pois se elas
morressem sem esse sacramento não podiam ir para o céu. Só o baptismo era capaz
de apagar aquela mancha e abrir as portas do paraíso. Para o inferno não iam,
pois não tinham cometido pecados pessoais para tanto castigo. Para o
purgatório, também não. É o tempo de dolorosa purificação, com chamas de fogo,
mas acaba por terminar no céu. Nesta espantosa geografia do Além estava tudo
previsto. As criancinhas seguiriam para o limbo, onde não eram felizes nem
infelizes, eram assim-assim.
Neste absurdo organizado, havia uma distribuição bastante
lógica dos espaços. O que nunca batia certo era chamar pecado a uma herança
considerada inevitável. Inevitável ou quase, pois havia uma excepção: por
extraordinário privilégio de antecipação, a mãe de Jesus escapara a essa
herança. Chama-se, por isso, a Imaculada Conceição.
Se Deus, porém, já tinha essa fórmula pronta porque não a
usava em todos os casos, em vez do espectáculo cinzento do limbo?
É óbvio que pecar implica saber e querer fazer o mal, isto
é, vontade livre. O que não podia ser atribuído a um recém-nascido por mais
precoce que ele fosse. Chamar pecado a uma herança inevitável excede o mais
elementar bom senso.
A nossa herança biológica, nem sempre é a mais favorável à
construção de um futuro saudável. Perante algumas doenças, os médicos perguntam
se não haverá nenhum caso na família. É frequente, aliás, ouvir dizer de
alguém: tem a quem sair! Mas se há qualidades e doenças hereditárias, do ponto
de vista ético não pode haver pecados hereditários. Para mim, era
evidente que o chamado pecado original, de pecado ó tinha o nome. Mas como
escreveu Paul Ricoeur: “nunca será demais afirmar o mal que fizeram às almas,
ao longo de séculos de cristandade, a interpretação literal da história de
Adão, primeiramente, e depois a confusão desse mito, tratado como história, com
a ulterior especulação agostiniana do pecado original”
2. Bento XVI participou, de algum modo, numa operação
de sabotagem da teologia que mandava para o limbo as crianças que morriam sem o
baptismo. Resultou. A 19 de Abril de 2007, o Cardeal W. Levada, então Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou um longo documento da Comissão
Teológica Internacional que termina assim: depois de tudo examinado, dispomos
de “fundamentos teológicos e litúrgicos sérios para esperar que as crianças que
morrem sem baptismo serão salvas e gozarão da visão beatífica”.
Ensinei, durante muitos anos, a teologia de S. Tomás de
Aquino sobre os Sacramentos. Defendi uma tese acerca da sua original concepção
sobre a presença transformante do Acontecimento pascal na celebração actual dos
sacramentos da fé cristã. Na última fase da sua teologia destacou, com vigor,
que a vontade salvífica e universal de Deus não está dependente das peripécias
dos sacramentos na Igreja. O documento proposto pelo Card. W. Levada, acima
citado, apoia-se nessa intuição muito esquecida e, no entanto, absolutamente fundamental
(Cf. S. Th. III. q.64,7 e par.).
A linguagem religiosa é polifónica. Tem muitas vozes, mas em
todas as suas expressões e modalidades, o seu registo é sempre simbólico:
aproxima o distante e distancia a falsa proximidade. O próprio Credo não é um
registo de informações, mas uma paradoxal confissão de fé em Deus conhecido
como infinitamente desconhecido, uma entrega no amor ao Amor que
misteriosamente nos amou primeiro, fonte da nossa recriação contínua e que
nenhuma verificação científica pode atestar. É de outra ordem.
3. O P.
Carreira das Neves é um biblista infatigável. Ainda estava quente o seu recente
livro sobre Lutero (Ed. Presença) e já nos presenteava com a Condição
Humana sem Pecado Original (Ed. Franciscana). Passa em revista algumas das
referências bíblicas mais congeladas, durante séculos, por leituras
historicisantes (Cf.Gen.1-3;Sl.51,7; Rom 5, 12-16) e constrói uma espécie de
antologia, exegética e teológica, sobre o chamado pecado original. Para
mim, em não existir como se existisse, de modo omnipresente e desde sempre,
consiste a sua grande originalidade.
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