Leonardo Boff (colunista do JB
online)
14/07/2015
Ele fez de tudo na vida. Na
juventude foi ateu e marxista. Mas de repente se converteu. Ordenou-se padre
durante a guerra. Logo entrou na Resistência contra os nazistas. Em 1949
fizeram-no Assistente da Juventude da Acção Católica. Mas seus métodos
libertários não agradaram o do status quo
eclesiástico e o mandaram acompanhar emigrantes italianos que vinham de navio à
Argentina. Na viagem encontrou um Irmãozinho de Jesus, seguidor de Charles de
Foucault cujo carisma é viver no mundo entre os mais pobres. Iniciou-se na
Argélia junto ao deserto e entrou na luta de libertação contra a dominação
francesa. Depois foi enviado à Argentina. Por anos trabalhou como operário com
madeireiros. Foi ao Chile de Pinochet. Mas logo seu nome estava na lista: “quem
encontrar um desses, pode eliminar”. Esteve por um tempo na Venezuela. Mas
acabou por instalar-se no Brasil em Foz do Iguaçu onde criou várias iniciativas
para os pobres, com ervas medicinais, fazenda didáctica para jovens
desamparados e outras organizações populares que ainda persistem hoje.
Teve muitos reconhecimentos
que quase sempre rejeitava. Mas o mais importante foi em 29 de Novembro de 1999
em Brasília quando embaixador israelita lhe conferiu a maior comenda a não
judeus: “justo entre as nações”. Durante a guerra criou com outros uma rede
clandestina que salvou 800 judeus.
Fez-se monge sem sair do
mundo mas sempre dentro do mundo dos lascados e humilhados. Todo o tempo livre
dedicava-o à oração e à meditação. Durante o dia recitava mantras e
jaculatórias. Foi uma das figuras mais impressionantes que passaram por minha
vida, com uma retórica de ressuscitar mortos. Éramos amigos-irmãos.
Estranhamente tinha um jeito
próprio de rezar. Foi ele que me contou. Pensava: se Deus se fez gente em
Jesus, então foi como nós: fez chichi, cocô, choramingava pedindo peito, fazia
biquinho com o que o incomodava como a fralda molhada.
No começo, pensava ele, Jesus
teria gostado mais de Maria, depois mais de José, coisas que Freud e Winnicott
explicam. E foi crescendo como nossas crianças, brincando com as formigas,
correndo atrás dos cachorrinhos e, maroto, roubava frutas do quintal do
vizinho.
Esse estranho místico, rezava
à Nossa Senhora imaginando como ninava Jesus, como lavava no tanque as fraldinhas
sujas e como cozinhava o mingau para o Menino e as as comidas fortes para o seu
marido carpinteiro, o bom José.
E se alegrava interiormente
com tais matutações porque assim devia ser pensada a encarnação do Filho de
Deus, na linha do Papa Francisco, não como doutrina fria, mas como facto
concreto. Sentia e vivia tais coisas na forma de comoção do coração. E chorava
com frequência de alegria espiritual.
Por onde chegava, criava
sempre ao seu redor uma pequena comunidade na pior favela da cidade. Tinha poucos
discípulos. Apenas três que acabavam indo todos embora. Achavam dura demais
aquela vida e ainda deviam meditar durante o dia, no trabalho, na rua, na
visita aos casebres mais decaídos.
Só, agregou-se então a uma
paróquia que fazia trabalho popular. Trabalhava com os sem-terra e com os
sem-tecto. Corajoso, organizava manifestações públicas em frente à prefeitura e
puxava ocupações de terrenos baldios. E quando os sem-terra e sem-tecto
conseguiam se estabelecer, fazia belas “místicas” ecuménicas com o faz sempre o
MST.
Mas todos os dias, por volta
das 10 da noite, se enfurnava na igreja escura. Apenas a lamparina lançava
lampejos titubeantes de luz, transformando as estátuas mortas em fantasmas
vivos e as colunas erectas, em estranhas bruxas. E lá se quedava até às 23
horas. Todas as noites. Impassível, olhos fixos no tabernáculo.
Um dia fui procurá-lo na igreja.
Perguntei-lhe de chofre: “meu irmão Arturo, você sente Deus, quando depois dos
trabalhos, se mete a rezar aqui na igreja? Ele te diz alguma coisa”?
Com toda a tranquilidade,
como quem acorda de um sono profundo, apenas disse: “Eu não sinto nada. Há
muito tempo que não escuto sua voz. Já senti um dia. Era fascinante. Enchia
meus dias de música e de luz. Hoje não escuto mais nada. Sofro com a escuridão.
Talvez Deus não me queira falar nunca mais.”
E então, retruqui eu, “por
que continua, todas as noites, aí na escuridão sagrada da igreja”? “Eu
continuo”, respondeu, “porque quero estar sempre disponível. Se Ele quiser se
manifestar, sair de Seu silêncio e falar, eu estou aqui para escutar. E se Ele,
de facto, quiser falar e eu não estiver aqui? Pois, cada vez, ele vem somente
uma única vez. Como outrora”.
Saí maravilhado e meditativo
por tanta disponibilidade. É por causa dessas pessoas, místicas anónimas, que a
Casa Comum, no dizer do Papa Francisco, não é destruída e Deus continua com sua
misericórdia sobre a humana perversidade.
Elas vigiam e esperam, contra
toda a esperança, o advento de Deus que talvez nunca acontecerá. Mas são os
pára-raios divinos que recolhem a graça que, silenciosamente, se difunde pelo
universo e faz que Deus continue a nos dar o sol e todas as estrelas e penetre
fundo no coração de todos os vivem na Casa Comum. E se Deus aparecer haverá
gente disponível para ouvi-lo. E chorarão de alegria.
Seu nome é Arturo Paoli que com 102 anos foi
finalmente ver e escutar Deus que lhe falará por toda a eternidade, no dia 13
de Julho de 2015 onde vivia em San Martino in Vignale nas colinas de Lucca,
Itália.
Sem comentários:
Enviar um comentário