Ao primeiro livro da Bíblia – e, portanto, do Pentateuco –
damos hoje o nome de GÉNESIS. É termo grego e significa “origem”, “nascimento”.
Os livros da Bíblia Hebraica não tinham qualquer título. Eram chamados,
simplesmente, pela primeira ou primeiras palavras. Este chamava-se berechit. Os
autores da tradução da Bíblia Hebraica para o grego (Bíblia dos Setenta) acharam
por bem dar aos livros um título de acordo com o seu conteúdo. Como este livro
trata do princípio de tudo, chamaram-lhe GÉNESIS, isto é, Livro das Origens.
Todos os povos se perguntaram alguma vez: Donde viemos? Qual
foi a nossa origem? Quem foi o fundador do nosso povo? Qual o nosso destino?
Umas vezes, essas perguntas eram formuladas a partir de situações de desgraça
colectiva: Que sentido tem o nosso fracasso e o nosso sofrimento? Que sentido
tem a morte irremediável? Há um Alguém que possa responder a todas as
interrogações do homem? Outras vezes, tinham um fundo político, pretendendo
legitimar situações de privilégio presente ou reclamar direitos fundados num
passado mais ou menos remoto.
O povo de Israel, na sua reflexão interna ou no confronto
com outros povos, religiões e culturas, colocou a si próprio estas e outras
questões semelhantes e deixou-nos as suas respostas neste livro. O GÉNESIS é,
pois, o livro das grandes interrogações e das grandes respostas, não só do povo
de Deus, mas de toda a humanidade. Por isso se diz que este livro é uma espécie
de grande pórtico da catedral da Bíblia, pois de algum modo a resume na
totalidade da sua beleza e conteúdo.
O GÉNESIS engloba, também, grande parte da História do povo
de Israel: desde “as origens” até à estadia de Jacob no Egipto e a consequente
formação das doze tribos. Pretendendo dar-nos uma concepção histórica,
horizontal e dinâmica da História da Salvação, este livro faz a ligação entre
“as origens” da humanidade (1,1) e a História concreta do povo de Israel. Por
isso apresenta-nos, sobretudo nos 11 primeiros capítulos, teologia e catequese
em forma de História, ou melhor, de histórias e não de factos históricos no
sentido científico. Poderíamos resumir assim o seu conteúdo:
1,1-2,4a: Criação do universo e dos seus habitantes (segundo
a tradição Sacerdotal: P).
2,4b-3,24: Formação do homem e da mulher. Origem do pecado
(tradição Javista: J).
4,1-24: “História de dois irmãos”, Caim e Abel. Descendência
do primeiro.
4,25-5,32: Set e a sua descendência.
6,1-9,17: Corrupção da humanidade e Dilúvio (anti Criação).
9,18-10,32: Recriação, a partir de Noé, o homem novo. Lista
de povos.
11,1-9: Torre de Babel: a humanidade constrói uma sociedade
sem Deus.
11,10-32: Descendência de Sem até Abraão, promessa de um
povo novo.
Ciclo de Abraão (12,1-23,20): vocação, emigração para
Canaã e Egipto. Nascimento de Isaac e Ismael. Morte de Abraão.
Ciclo de Isaac (24,1-27,46).
Ciclo de Jacob (28,1-36,43): já a partir de 25,19,
Jacob começa a tornar-se a personagem principal, tanto em relação ao pai
(Isaac), como em relação a seu irmão Esaú.
Ciclo de José (37,1-50,26): o penúltimo dos filhos de
Jacob, vendido como escravo para o Egipto, faz a ligação histórica e teológica
com o livro seguinte, o Êxodo. É um ciclo muito especial, também chamado História
de José.
Este esquema histórico-literário apresenta-se como uma obra-prima,
não só a nível teológico, mas também na sua estrutura literária. De facto, a
“História das Origens” (cap. 1-11) aparece como Prólogo histórico-teológico da
História de Israel e da humanidade. E pretende ser o elo de ligação entre a
Criação do mundo e Abraão, o pai do povo hebreu (cap. 12). O Egipto, como lugar
de escravidão do Povo, é lugar de peregrinação para Abraão, Jacob e José. Estes
e outros elementos fazem a ligação deste livro com o Êxodo e com os outros
livros seguintes.
Donde vem todo este material? O povo hebreu vivia numa
região onde se cruzavam muitos povos e civilizações. Este facto originou um
inegável intercâmbio cultural entre eles. Os impérios que dominaram a
Mesopotâmia e o Egipto, assim como as civilizações da Fenícia e de Canaã, são a
fonte literária e histórica do GÉNESIS e do AT em geral.
É inegável que nos 11 primeiros capítulos se encontram
abundantes elementos dessas culturas, incluindo alusões a certos mitos da
Suméria, da Babilónia e de Ugarit, especialmente aos poemas da Criação,
Enuma-Elish e Atrahasis. O poema de Gilgamesh está também presente no relato do
Dilúvio. Muitas vezes, os autores do Génesis colocam-se em polémica aberta
contra os mitos pagãos, como no caso de 1,1-2,4a.
A História Patriarcal (cap. 12-50) acolheu lendas antigas e
referências a El, que faziam parte do espólio cultural dos santuários cananeus.
Encontramos, igualmente, pequenos factos alusivos ao convívio com povos
vizinhos. No que se refere à origem dos Patriarcas, há relatos sobre os
antepassados tribais, heróis antigos, genealogias ou listas de patriarcas (cap.
5) e de povos (cap. 10), e outras histórias que pretendiam explicar a origem
dos povos em geral e de Israel em particular. Por isso, este livro tem géneros
literários variados:
A lenda: é o mais comum e consiste em produzir um
relato a partir de um facto real, nome de pessoa ou de lugar. Há lendas
etiológicas, que pretendem explicar, no passado, a “causa” de qualquer
fenómeno ou acontecimento do presente. Um belo exemplo de lenda etiológica é o
relato da destruição de Sodoma e Gomorra. Há ainda lendas etiológicas para
explicar a origem de nomes de pessoas (para Isaac, que significa “rir”, ver
18,9-15; 21,2-7).
A genealogia: é uma lista de nomes que recua o mais
longe possível até ao passado, a partir do presente. Pretende justificar no
aspecto jurídico certos acontecimentos, privilégios de uma classe social ou de
um povo (5,1-32; 10; 11,10-32). É sua intenção preencher o imenso espaço entre
a Criação e a História do povo hebreu.
As sagas ou histórias antigas de todo o género:
luta pelos poços, guerras tribais, histórias de famílias...
Também encontramos aqui a linguagem mítica. Sabemos
que os autores do GÉNESIS combateram os mitos. Mas, para falar dos grandes
problemas da humanidade, não deixaram de utilizar a linguagem e certos
elementos mitológicos que estavam em voga, como a criação do homem a partir do
barro (2,7), a árvore da Vida e a árvore da ciência (2,9-10; 3,1-6), o mito da
serpente (cap. 3). Todo este material foi coleccionado muito lentamente.
Primeiro surgiram pequenos conjuntos à volta de um santuário, de um
acontecimento ou de uma personagem; podemos chamar-lhes tradições, e
foram transmitidas oralmente, ao longo de muitos séculos. Quando aparece a
escrita, essas tradições são fixadas em documentos. Com a queda do Reino
do Norte (Samaria), em 722, essas tradições são trazidas para o Sul
(Jerusalém). Finalmente, no período do Exílio (587-538), os redactores da
escola Sacerdotal reúnem todas as grandes tradições e documentos existentes,
imprimindo-lhes o seu próprio estilo e teologia. Podemos dizer que o GÉNESIS
contém material recolhido entre os séculos XIII-V a. C.
Apesar de conter muitos elementos históricos, o GÉNESIS é
uma obra essencialmente teológica que procurava responder aos problemas
angustiantes colocados pelo acontecimento do Exílio (séc. VI): no meio das
trevas, Deus é a luz do seu povo; no desespero do cativeiro, Deus há-de renovar
a Aliança feita depois da saída do Egipto.
Por detrás das “histórias” contadas pelos seus autores, o
GÉNESIS contém os grandes temas teológicos, não somente do Pentateuco mas da
Bíblia em geral: a Aliança de Deus com a humanidade, o pecado do homem, a nova
promessa de Aliança, a promessa da Terra Prometida, a bênção de Deus garantindo
a perenidade do Povo, o monoteísmo javista.
O GÉNESIS não foi redigido para escrever História, mas para
dizer que Deus domina a História. Por isso, é essencialmente um livro de
catequese e de teologia, mesmo nos 11 primeiros capítulos, em que não há
preocupação histórica ou científica, no sentido actual. Por isso, a Pontifícia
Comissão Bíblica, já em 16 de Janeiro de 1948, dizia, a este respeito: “Estas
formas literárias não correspondem a nenhuma das nossas categorias clássicas e
não podem ser julgadas à luz dos géneros literários greco-latinos e modernos.”
Todos os grandes temas teológicos do GÉNESIS foram relidos
pelos cristãos à luz do autor da nova criação, Jesus Cristo (Jo 1,1-3). As
grandes personagens do GÉNESIS – Adão, Eva, Noé, Abraão e os outros Patriarcas –
aparecem frequentemente ao longo do Novo Testamento para lembrar aos crentes
que há uma só História da Salvação. Por isso, o Apocalipse – o último livro da
Bíblia – não se compreende sem o primeiro.
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