Números
Integrado no grande bloco da Torá ou Pentateuco, o livro
dos NÚMEROS recebeu este nome na tradução grega dos Setenta, por abrir com os
números do recenseamento do povo hebraico e, depois, apresentar outros
recenseamentos ao longo da narrativa (cap. 1-4 e 26). Relacionados com este
título podem estar ainda os números das ofertas dos chefes (cap. 7), das
ofertas, libações e sacrifícios a oferecer pelo povo (cap. 15 e 28-29).
Trata-se, porém, de um livro narrativo com alguns trechos legislativos, que se
enlaça com o Êxodo, do qual está literariamente separado pelo código
legislativo do Levítico.
CONTEÚDO E DIVISÃO
O conteúdo deste livro abrange as peripécias ou
vicissitudes da caminhada pelo deserto, desde o Sinai até às margens do rio
Jordão, fronteira oriental da Terra Prometida. No aspecto histórico, a
narrativa pode dividir-se em três grandes sequências literárias: I. No deserto do Sinai (1,1-10,10). Referem-se as ordens de Deus para a caminhada
através do deserto com a disposição do acampamento das tribos, os deveres dos
levitas e outras leis de carácter ritual.
II. Do Sinai a Moab (10,11-21,35).
Os acontecimentos mais importantes desta segunda parte estão marcados por etapas
geográficas, algumas das quais são difíceis de identificar. Descreve-se a
caminhada directa para Cadés-Barnea, mesmo na fronteira sul de Canaã e, depois,
a inflexão para oriente e a errância penosa durante quarenta anos através do
deserto até à chegada a Moab, já na fronteira da Terra Prometida.
III. Na região de Moab (22,1-36,13). Começando com a bênção de Balaão, as narrativas
desta terceira parte apresentam um novo recenseamento dos israelitas, descrevem
a nomeação de Josué para substituir Moisés, contêm algumas prescrições de
carácter cultual, narram a luta contra os madianitas e a partilha de Canaã com
a instalação das tribos de Rúben, Gad e parte de Manassés em Guilead, na
Transjordânia, e a recapitulação das etapas do Êxodo.
Como tal, no seu encadeamento histórico, o livro dos
NÚMEROS é inseparável da epopeia do Êxodo. Mas, também nele, é preciso ter
presente que as narrativas foram redigidas bastante depois dos acontecimentos
históricos, à luz da perspectiva da fé e da celebração litúrgica do templo de
Jerusalém, já na Terra Prometida.
A redacção definitiva deste livro deve colocar-se em data
posterior ao exílio da Babilónia. Certas leis, sobretudo, são determinadas pela
prática ritual estabelecida pelos sacerdotes após o Exílio (séc. VI-V). De resto,
só bastante tardiamente, graças a tradições orais muito antigas de proveniência
diversa e a fontes documentais variadas, transmitidas como “memória do passado
histórico”, é que terá sido possível cerzir em unidade literária o conjunto das
leis e a sequência dos acontecimentos.
TEOLOGIA
Como quer que seja, toda a narrativa está articulada
dentro do binómio da fidelidade-infidelidade à Aliança, evidenciando o
movimento quaternário da História da Salvação: o povo peca, Deus castiga, o
povo arrepende-se, Deus perdoa. Nos interlúdios do contrastante claro-escuro
que as tentações acarretam, surge o difícil papel de Moisés, como mediador das
exigências de Deus e advogado das necessidades e angústias do povo; mas, até
ele acaba por sofrer um castigo, sendo privado de entrar na Terra Prometida, já
com ela à vista. É a lei da pedagogia divina, a que até os homens de Deus têm
de se sujeitar.
Afinal, o Livro dos NÚMEROS não é factualmente histórico;
apresenta uma narrativa historicizante de acentuado valor didáctico-pragmático
para que, no drama dos seus antepassados através do deserto, o povo eleito, já
na Terra Prometida, soubesse enfrentar os desafios e as esperanças do seu
futuro, tal como o pagão Balaão, qual profeta inspirado de Israel, o soube
prognosticar (cap. 23-24).
LEITURA CRISTÃ
Este foi um dos livros da Bíblia que não mereceu especial
atenção na tradição da Igreja. No entanto, os modernos estudos sobre a Aliança
e sobre a História da Igreja estão a fazer-lhe justiça. Apesar de não
aparecerem aqui explicitamente alguns dos grandes temas do Pentateuco (Criação,
Eleição, Promessa, Aliança, Lei), o livro dos NÚMEROS é já a realização da
Aliança de Deus com o seu povo, por meio do culto.
O tema da bênção, de que o povo é depositário nos quatro
oráculos de Balaão (23-24), anuncia a eleição da dinastia davídica (24,17).
Importante é ainda o tema da Tenda, lugar da Presença
(Shekkinah) do Senhor, que caminha no meio do seu povo.
O tema do Deserto é também fundamental neste livro e foi
dos que teve maior ressonância, tanto no resto do Antigo Testamento como no
Novo: o povo de Israel, peregrino pelo deserto durante “quarenta anos”,
tornou-se o protótipo do novo povo de Deus, guiado por Jesus Cristo, que também
foi ao deserto (Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13). Jesus Cristo é, para este
novo povo liberto, a água viva (20,2-13; e Jo 4,1-26), o verdadeiro maná
(11,6-9; e Jo 6,26-58), a verdadeira serpente de bronze que salva o seu povo
(21,4-9; e Jo 3,13-15; 1 Cor 10,9-11).
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